quinta-feira, 16 de junho de 2011

O espírito das árvores

Blue Ice Angel

A Elson Martins, por seus 72 anos.

Dias desses, lembrei de seu Chico. Falava da vida mascando fumo de rolo e afastando, com o primeiro graveto que estivesse ao alcance das mãos, as folhas ao redor. Gostava da terra, das canoas subindo e descendo o rio lá pras bandas da comadre Severina, do barulho que dizia ouvir do igarapé, quando a lua ficava cheia e as moças assanhadas. Era filósofo, não. Mas traduzia angústias e simplicidades como nenhum outro.

Como filho e neto de seringueiro, tinha o hábito do silêncio. Dizia que as palavras perdiam sentido fácil se soltas ao vento. Eram matéria estranha, com vida própria e uma fúria que pedia respeito. Por isso falava pouco. E nunca, jamais, usava das “traiçoeiras” – era assim que as chamava – sem antes pesá-las devidamente. Também não gostava de salamaleques. Desconfiava de gente muito festiva, falastrona. Preferia o jeito matuto de resolver pendengas: olho no olho, sem meias palavras.

Dele podiam falar quase tudo – “é doido”; “dá medo”; “dizem que pega cobra pelo rabo”; “onça nenhuma arrisca entrar em seu terreiro” –, menos que era má pessoa. Sua ambição não cabia na palma da mão, mas também não custava dinheiro: queria mesmo era levar a vida tranquila sob as árvores, manter o roçadinho, ver a molecada crescer e ganhar o mundo, voltando depois com filhos para ele e a mulher criarem. Nunca atirou numa fêmea, nem gostava da caça por diversão. Dizia que a vida nem sempre era justa. “Mas isso não dá ao homem o direito de cometer injustiças”, emendava.

Confiança mesmo, só em bicho e árvore. De Deus ele ouviu falar quando era solteiro. Mas desacreditou na coisa ao ver a mãe e o pai arrastados pela jagunçada, sem dó nem piedade. Os olhos marejados, seu Chico lembra a cena e engasga a dor sussurrando: “E isso lá é coisa que pai deixe acontecer com filho, dona?”.

Seu Chico chorava, não. Engolia a dor enquanto ajudava a desobstruir o caminho de uma leva de formigas. O Chapéu de palha desce um pouco mais sobre a testa, os ombros se curvam, os pés ameaçam movimento. Mas ele está quieto. Só sua respiração parece cortar o silêncio das grandes árvores.

“O mais difícil nesse mundo, dona, não é arrotar feitos ou vontades. Difícil mesmo é ter força pra levantar todos os dias e fazer como as formigas. Trabalhar sem alarde. Sem ninguém pra lhe seguir ou aplaudir. Só por acreditar que fazendo isso, estamos à altura desse bem maior que é a vida”.

Das pupilas de seu Chico vejo surgir o brilho. A luz que, em vão, os homens procuram nos holofotes. Essa luz sem cor definida que vara o corpo das fragilidades e alcança, nos espíritos que conhecem a verdadeira liberdade, a essência do que podemos ser quando nos despimos da mentira, da vaidade, dos discursos inócuos.

4 comentários:

Anônimo disse...

UM BELÍSSIMO TEXTO!
UMA JUSTA HOMENAGEM A UM HOMEM DESPIDO DA MENTIRA, DA VAIDADE E DOS DISCURSOS INÓCUOS!
UMA SAUDADE ENORME DEIXOU MEU PEITO QUERENDO ESTAR PERTO DO IRMÃO ELSON.
PARABÉNS, VÁSSIA!
FELICIDADES, ELSON!

Leila Jalul

Heliete S. Millack disse...

A correria da vida moderna nos priva acompanhar mais de perto seu talento no manejo com as palavras. Felizmente, há momentos em que nos damos ao luxo de "guanharmos o dia" após uma leitura que se preze. Parabéns, Vássia. O texto é de uma literalidade emocionante.

Heliete S. Millack

Fernando disse...

Segue!

Anonima disse...

Escandalosamente gostoso de se ler, parabéns.